Fundos de Recuperação da UE e a Itália: nem tudo o que brilha é ouro
Lamento, mas mais uma vez tenho de refutar o discurso dominante dos media, prontos a entregar a Bola de Ouro 2020 ao primeiro-ministro Conte pelo acordo assinado sobre o Fundo de Recuperação, após um renhido confronto de quatro dias no seio do Eurogrupo.
Arrisco-me assim a provocar alguma irritação entre aqueles que, de boa fé, há muito acarinharam a imagem de um país que está finalmente a erguer a cabeça e a melhorar a sua situação. Arrisco-me também a provocar acusações de trabalhar para o inimigo, por parte de poucas pessoas, de má fé, para quem é proibido perturbar o grande timoneiro quando este está a manobrar.
Mas como os factos não correspondem à história que nos é contada, devemos cingir-nos a eles, e é isso que vou fazer.
Os números do acordo
O Fundo de Recuperação será dotado com 750 mil milhões de euros, dos quais 390 mil milhões de euros serão disponibilizados sob a forma de transferências (erradamente definidas como «a fundo perdido / não reembolsáveis») e 360 mil milhões de euros sob a forma de empréstimos. Em comparação com a proposta original, que previa 500 mil milhões de euros em transferências e 250 mil milhões de euros em empréstimos, o acordo alterou, portanto, a distribuição.
Desse montante, a Itália receberá 81,4 mil milhões em transferências e 127,4 mil milhões em empréstimos.
São, sem dúvida, números gordos, mas de onde vêm eles?
Serão recolhidos nos mercados financeiros através da emissão de obrigações pela Comissão Europeia, o que garantirá o orçamento da União Europeia.
Como resultado, o orçamento da União Europeia será aumentado e, uma vez que o orçamento da UE é composto pelas quotas de financiamento de cada Estado, é necessário ter em conta o montante que a Itália país terá de pagar, a fim de permitir o lançamento do Fundo de Recuperação.
E aqui está um primeiro número surpreendente, porque a contribuição adicional que a Itália terá de pagar é de 96,3 mil milhões 1.
Em resumo: a Itália pagará 96,3 mil milhões para receber 81,4 mil milhões em transferências e 124,7 mil milhões em empréstimos. Assim, se há algo que é dado «a fundo perdido», são os 14,9 mil milhões que a Itália coloca para além do que recebe como «transferência», enquanto o dinheiro real que recebe é inteiramente emprestado – a baixas taxas de juro, mas ainda assim, como é fácil de ver, o Pai Natal não existe.
Quando chega o dinheiro
O Fundo de Recuperação será incorporado no orçamento de 2021-2027 da União Europeia. A Comissão poderá, portanto, levantar fundos nos mercados financeiros a partir de Janeiro de 2021. O acordo prevê que 70 % dos fundos serão desembolsados em 2021-2022 e 30 % no ano seguinte. Voltando às contas italianas, o país deverá, portanto, receber 146 mil milhões nos próximos dois anos e 63 mil milhões em 2023.
A parte do dinheiro emprestado (que, como vimos, é a única que chegará efectivamente a Itália, dado o saldo negativo da parte relacionada com as transferências) terá de ser gradualmente reembolsada de 2027 a 31 de Dezembro de 2058.
O acordo prevê um pré-financiamento de 10 % – para a Itália 20,9 mil milhões –, a ser utilizado para fins de acordo com os programas gerais da União Europeia.
Estamos, portanto, a falar de recursos que só estarão disponíveis no final da Primavera de 2021, um prazo que não é certamente adequado para intervenções de emergência.
As condicionalidades do acordo
Não há refeições à borla, já se sabe. E para obter o dinheiro do Fundo de Recuperação (tudo é emprestado, penso que isso já ficou claro), o caminho está cheio de armadilhas, as famosas condicionalidades.
Para ter acesso aos fundos da UE, a Itália, tal como os outros Estados-membros, tem de preparar um plano de recuperação trienal (2021-2023), que será apresentado no Outono. E que, se considerado apropriado, será revisto em 2022, antes da distribuição da tranche de 2023.
Os planos devem ser preparados tendo em conta que a pontuação de avaliação mais alta «deve ser obtida para os critérios de coerência com as recomendações específicas do país» (ponto A19 do Acordo).
As recomendações referidas são as de 2019, tendo as de 2020 sido ignoradas devido à pandemia e, no que diz respeito à Itália, são as seguintes: reforma fiscal, reforma laboral, reforma da justiça, redução da dívida (à qual devem ser afectadas todas as receitas extraordinárias), redução estrutural da despesa pública igual a 0,6 % do PIB.
Por outras palavras, um regresso lixiviado à armadilha da dívida pública e às políticas de austeridade.
Se isto é uma vitória, mais vale não pensar no que seria uma derrota.
Quem julga e quem decide
Em consonância com as indicações da Comissão Europeia, que terá dois meses para avaliar os planos apresentados pelos Estados, o Conselho Europeu decidirá por maioria qualificada (55 % dos países, ou seja, 65 % da população) se aprova o plano. A luz verde é um acto de execução que deve ser efectuado pelo Conselho no prazo de um mês. Mas os objectivos intermédios e finais terão de ser atingidos. Por conseguinte, a Comissão perguntará ao Comité Económico e Financeiro se estes objectivos estão a ser atingidos. Se, «excepcionalmente», alguns países considerarem que existem problemas, podem interromper os pagamentos de fundos e pedir para abordar a questão específica numa reunião especial do Conselho Europeu. Este é o famoso «travão de mão» accionado pelo «paraíso fiscal frugal» batavo.
Um caminho monitorizado passo a passo, que, para um país como o nosso, que já tem um rácio dívida/PIB de cerca de 150%, pode suscitar mais do que uma surpresa desagradável.
Primeira observação
Sendo verdade que finalmente se abriu um conflito na Europa sobre o perfil da União Europeia, é de notar que este conflito permaneceu totalmente no âmbito de uma visão liberal da dimensão europeia.
A prova disto é que ninguém avançou a necessidade de abordar a questão principal: o papel do Banco Central Europeu e a sua chamada independência (do interesse geral, não dos mercados).
A reivindicação de um carácter público para o Banco Central Europeu (semelhante ao de todos os bancos centrais do mundo) teria permitido a todos os Estados dotarem-se dos recursos necessários, sem aumentar a dívida pública e, sobretudo, sem as famosas condicionalidades.
Segunda observação
Sendo verdade que a União Europeia evitou o colapso ao assinar um acordo ao fim de quatro dias, é de notar que este resultado agrava o seu perfil como comunidade política e social e a sua capacidade de intervenção estratégica sobre os principais desafios da época.
Do ponto de vista político, basta mencionar a concessão feita aos chamados países de Visegrad (Hungria e Polónia em primeira instância) para dissociar a ajuda financeira do respeito pelo Estado de direito.
Do ponto de vista da estratégia de intervenção, basta considerar que, com a nova divisão entre transferências e empréstimos (que reduz consideravelmente os primeiros e aumenta os segundos), estão a ser cortados fundos cruciais para programas europeus comuns, a começar pelos que estão ligados à transição para a eco-sustentabilidade.
Do ponto de vista das tomadas de decisão, a União Europeia está de facto a reafirmar-se como uma simples justaposição de Estados, cada um interessado no seu próprio interesse nacional e em concorrência directa com os outros.
Ao contrário do que nos diz a cantilena dos media, não estamos perante qualquer mudança de paradigma nas nossas instituições europeias.
Para assegurar que, após a pandemia, nada seja realmente igual ao que era antes, torna-se urgente, para o próximo Outono, preparar um Plano de Recuperação das mobilizações sociais.
Notas:
[1] Está escrito, preto no branco, na Tabela A1, «Allocation key», anexa ao «Commission Staff Working Document», (Brussels 27.5.2020, SWD(2020) 98 final).
[Cópia do documento em cadpp.org]
Fontes e referências
Traduzido para francês por Fausto Giudice, seguido de tradução instantânea francês-português e editado por Rui Viana Pereira.
Fontes: Tlaxcala, CADTM.org e https://www.attac-italia.org/recovery-fund-e-tutto-oro-o-tutto-loro-quello-che-luccica/, 22/07/2020.
Índice deste caderno
O Mecanismo de Recuperação e Resiliênciavisitas (todas as línguas): 9