O que é uma dívida ilegítima?
Embora a noção de legitimidade seja essencial na organização da sociedade e do Estado, há quem considere a dívida ilegítima uma noção nebulosa e subjectiva, evitando fazer qualquer referência ao assunto. Este erro é desconcertante quando vem da parte de correntes políticas que reivindicam a democracia e o estado de direito, pois coloca em causa essas mesmas reivindicações. Merece por isso alguma clarificação.
Em primeiro lugar é preciso deixar claro que, quando falamos de legitimidade no contexto da dívida pública (ou do Estado em geral), não estamos necessariamente a referir-nos à conformidade legal dos actos praticados pelas autoridades públicas – embora esse aspecto também possa estar em causa –, mas sim a algo fundamental e a montante da elaboração das leis, da constituição do Estado e dos actos dos poderes públicos:
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a justificação fundadora das leis e dos órgãos de poder, bem como o acordo de princípios (pacto social) em torno dessa justificação;
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a competência dos órgãos de Estado;
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os deveres e funções do Estado em relação à população.
Vejamos cada uma destas facetas de forma tão resumida quanto possível, pois uma análise aprofundada do conceito de legitimidade levar-nos-ia muito longe, através de continentes de História, de jurisprudência e de filosofia política que não cabem aqui.
1. Legitimidade e competência
Comecemos pelo aspecto mais simples, com um exemplo elementar: um agente da Polícia que pretende entrar na nossa casa e revistá-la, por sua própria iniciativa. Na ausência de uma ordem judicial, esse acto é ilegítimo e confere-nos o direito de resistir, porque a decisão, grave e excepcional, de permitir a violação do nosso espaço privado cabe a um órgão judicial, não à Polícia. O facto de existir uma lei que permite, em casos excepcionais, a violação da nossa privacidade não confere automaticamente ao agente da Polícia o direito de a violar; o agente apenas pode executar uma decisão tomada por quem tem legitimidade para decidir sobre essa matéria.
As áreas de competência e legitimidade de cada órgão do Estado são uma coisa com a qual lidamos todos os dias, ainda que não tenhamos consciência disso: seria ilegítimo um tribunal administrativo emitir uma sentença de delito comum; ou um fiscal de impostos passar uma multa de trânsito. Nos exemplos referidos a resistência ou mesmo a desobediência civil é legítima e está contemplada na Constituição portuguesa; o direito de resistir contra actos ilegítimos é fundamental e aplica-se em todos os casos, incluindo a cobrança de uma dívida ilegítima.
Em suma: o facto de alguém pertencer a um órgão de poder do Estado não lhe confere um poder indiscriminado; todos os actos ilegítimos e suas consequências conferem às suas vítimas o direito de resistência ou de desobediência civil. Estas são as garantias de fundo que distinguem o Estado moderno, dito de direito, de um regime baseado na força bruta e na vontade discricionária de um ditador ou de um grupo de interesses oligárquicos.
Inversamente, se eu vir alguém a açoitar uma criança pondo a sua vida em perigo, embora eu não tenha competências policiais, posso legitimamente intervir e até exercer uma quantidade de violência necessária e suficiente para salvar a criança – por razões óbvias que me dispenso de explicar.
No caso da negociação de um contrato de endividamento público que obriga a totalidade da população e que, como sucedeu com os financiamentos concedidos a Portugal, acarreta profundas alterações sociais, económicas e políticas, colocando questões de uma vastidão que a justo título pode ser considerada constitucional, a primeira pergunta a fazer, antes de sabermos a quanto monta o empréstimo e quais são as suas condições, é a seguinte: os negociadores desse acordo são legítimos? Têm competência para fazer um acordo com essa amplitude, em nome da população? Se os negociadores forem ilegítimos e se nós deixarmos passar em branco esse acto, estaremos a abrir um precedente; estaremos a enviar uma mensagem muito clara às pessoas instaladas nos órgãos de poder ou a ele candidatas: podem fazer o que quiserem, podem abusar do poder que vos foi conferido, que nós não protestamos, não nos revoltamos, não tocamos sequer no assunto. É um franco convite ao exercício do poder despótico.
Encontramos um exemplo recente de ilegitimidade profunda na atitude do governo de Tsipras, em Julho de 2015, que promoveu um referendo nacional para sondar a vontade da população grega quanto às condições de submissão e austeridade exigidas pela UE e acabou por actuar em sentido oposto ao resultado da consulta, aceitando reduções drásticas da autonomia do Estado grego, a começar pela limitação da vontade soberana popular.
Outro exemplo mais recente, a propósito do golpe militar na Turquia, em Julho de 2016: abafada a rebelião, o presidente Erdogan (poder executivo) ordenou a demissão de milhares de juízes (poder judicial), quebrando assim o princípio da separação de poderes, que é um dos pilares da legitimação do Estado moderno. Este exemplo de ilegitimidade, pela sua clareza, ajuda a compreender melhor a gravidade de outro caso um pouco mais obscuro e nada divulgado: os contratos de endividamento assinados pelo Governo português incluem diversas cláusulas que limitam ou suspendem a competência do sistema jurídico nacional.1
2. Mecanismos de legitimação do estado
Tudo, na construção de um Estado de direito, se alicerça no princípio da legitimidade. Fora deste princípio não existe Estado, apenas pode existir subjugação pela força bruta.2 Por detrás da construção do Estado, antes mesmo da elaboração da primeira lei (a Constituição), existe uma convenção colectiva legitimadora, segundo a qual o povo é soberano e a sua vontade se exprime através de representantes eleitos.3 Resulta daqui que o Parlamento e o presidente da República (ambos eleitos por voto universal) são os únicos representantes legítimos do conjunto da população portuguesa. Outros órgãos do Estado (por exemplo, o Governo), pontualmente e com limitações que deviam ser óbvias, podem receber um mandato de representação. Mas no caso da negociação dos contratos de financiamento ao Estado português, que foi preparada, executada e assinada pelo Governo, pondo em causa decisões fundamentais da Assembleia Constitucional, existem justas razões para questionar a legitimidade dessa assinatura.
3. As funções do Estado e o conceito de dívida ilegítima
Em face da carta dos direitos humanos e da carta dos direitos sociais dos povos – adoptadas pelas Nações Unidas, pela União Europeia e pela Constituição portuguesa –, o primeiro dever ou função dum Estado consiste em zelar pelo bem-estar e pelos interesses gerais da população, se necessário em prejuízo de interesses particulares ou alheios. Isto permite-nos definir o conceito de dívida ilegítima de forma simples e sem margem para dúvidas ou subjectividades:
Uma dívida pública é ilegítima quando serve para beneficiar uma minoria privilegiada.
Note-se que esta definição não pode ser reduzida nem simplificada (resultando, por exemplo, em «a dívida é ilegítima quando beneficia uma minoria» ou «o endividamento público só é legítimo quando beneficia a maioria da população»), pois um investimento do Estado destinado a proteger ou a beneficiar uma minoria fragilizada (por exemplo, os deficientes, a população de uma região carente de assistência médica, etc.) não pode ser considerado ilegítimo – corresponde a um desígnio de solidariedade colectivamente assumido e por isso é legítimo.
No caso da dívida pública portuguesa contraída a partir de 2011, que serviu essencialmente para salvar bancos privados em dificuldades, garantir as rendas exorbitantes das PPP (parcerias público-privadas) e refinanciar o pagamento da dívida acumulada, a ilegitimidade é gritante, pois os compromissos assumidos e as condições de financiamento aceites infligiram à generalidade da população sacrifícios e perdas de enorme dimensão; o prejuízo imposto à generalidade da sociedade serviu para beneficiar uma minoria – banqueiros e grandes accionistas – que à partida já era poderosa e privilegiada, servindo-se aliás desse poder para forçar o endividamento público em seu próprio benefício; e por fim a própria soberania e autonomia da população portuguesa foi posta em causa, abalando o tipo de regime e o projecto colectivo de vida construídos ao longo de quatro décadas.
A ilegitimidade da dívida – como qualquer outro acto ilegítimo –, se tiver sido executada com conhecimento de causa do credor, implica a nulidade da dívida, dos acordos celebrados e das medidas de austeridade; os actos ilegítimos devem ser considerados nulos e os seus promotores devem ser responsabilizados pelos efeitos resultantes e pelos prejuízos causados à população. É isto, certamente, que provoca embaraço nas correntes políticas afectas ao poder (ou a ele candidatas), impedindo-as de aceitar um argumento tão fundamental, tão estruturante de toda a vida colectiva.
Factores específicos de ilegitimidade nos acordos de endividamento do Estado português
O Estado português negociou a partir de 2011 um conjunto de contratos vulgarmente designados pela imprensa e pela elite política como «empréstimos» ou «ajuda financeira», mas que de facto, lendo os contratos, verificamos serem linhas de crédito para refinanciamento da dívida preexistente e financiamentos condicionados (isto é, empréstimos sujeitos a pesadas condições políticas) com um fim específico: recapitalizar a banca privada; o próprio contrato refere explicitamente que a utilização dos financiamentos para outros fins dá origem a punições. Nessas negociações a população portuguesa foi representada pelo ministro das Finanças e pelo governador do Banco de Portugal (BdP). Logo à partida, ainda que nos disponhamos a aceitar a presença do governador do BdP como observador ou conselheiro, uma coisa é evidente: o BdP, embora seja uma entidade sujeita ao direito público, não é um órgão representativo da população; poderia representar, quando muito, os banqueiros estabelecidos em Portugal, os quais constituem uma ínfima minoria e cujos interesses quase sempre se opõem aos da maioria da população. Permitir que o BdP estabeleça acordos financeiros internacionais em nome do povo português é comparável a permitir que uma empresa de higiene urbana subcontratada pela câmara represente a população do município – é um absurdo e uma ilegitimidade óbvia. O contrato negociado entre o Governo português e o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) (ver análise extensa noutro artigo) contém uma longa série de ilegitimidades, muitas delas decorrentes das condições estipuladas no próprio contrato.
O silenciamento da questão da ilegitimidade da dívida pública abriria caminho à indiferença da opinião pública perante a ilegitimidade de muitas das instituições e autoridades nacionais e da União Europeia (que de resto esteve profundamente envolvida no endividamento ilegítimo do Estado português), implicaria um recuo civilizacional no que diz respeito à garantia dos direitos humanos e sociais e constituiria um convite ao uso indiscriminado do poder.
Notas:
1. Quando me refiro ao «sistema jurídico nacional» isto não deve ser entendido como uma posição nacionalista face ao direito internacional e à solidariedade e colaboração entre os povos. Pelo contrário, apenas pretendo pôr em destaque o silenciamento da vontade das populações.
2. O caso português é relativamente simples. No caso das monarquias constitucionais, dos regimes presidencialistas (França, p. ex.), dos regimes bipartidários e bicamarários, a coisa é um pouco mais complicada. Mas todos esses regimes assentam num pacto social legitimador.
3. Não cabe aqui discutir a bondade dos diferentes sistemas de poder. Apenas pretendo deixar claras as regras de funcionamento do sistema em que vivemos, ainda que na prática elas sejam violadas a todo o instante.
Fontes e referências
Francisco Louçã e Mariana Mortágua – A Dividadura, ed. Bertrand, Lisboa: 2012.
Chamamos dívida ilegítima, e portanto anulável, a todos os compromissos do Estado que decorram de contratos forçados, de imposições negociais ou de vantagens abusivas.
(...) é dívida ilegítima a que decorre de imposições políticas que, como as do programa da Troika para Portugal, determinam a perda de direitos essenciais de todo um povo e a degradação da capacidade de escolha de investimento, de criação de emprego e de determinação de um sistema fiscal mais justo. Sabendo ainda que tal programa aumenta o nível de endividamento e que portanto precipita o país numa situação de dependência agravada, o povo português tem o direito de considerar ilegítima esta dívida que cria mais dívida e, portanto, atinge a soberania e a democracia.
(...) é dívida ilegítima a que decorre do crime de enriquecimento sem causa, em particular por via de juros abusivos, como os impostos pelo acordo com a Troika em maio de 2011 (...)
(...) é dívida ilegítima a que decorre de contratos de compra de armamento (...)
Éric Toussaint & Renaud Vivien – «Grécia, Irlanda e Portugal: Porque É Que os Acordos com a Troika São Odiosos?», 16/08/2012.
A ingerência da Troika nos assuntos internos destes Estados prejudica flagrantemente a democracia. Os credores advertiram claramente que as eleições na Irlanda e em Portugal não poderiam pôr em causa a aplicação dos acordos.»
«Em direito, quando uma das partes dum contrato não pode exercer a sua vontade com autonomia, o contrato fica ferido de nulidade. (…) Ao serem impedidos de recorrer ao crédito nos mercados financeiros em condições razoáveis e a longo termo, devido às taxas de juro exigidas pelos mercados financeiros (entre 12 e 17%, conforme os casos), os governos destes três países tiveram de recorrer à Troika, que se aproveitou da sua condição de emprestador de último recurso. (...)
Embora um Estado tenha o direito de transferir uma parte da sua soberania para uma entidade estrangeira, por meio de um acordo, essa transferência não pode, sem violar o direito internacional, comprometer a independência económica do Estado, que é um elemento essencial da independência política. [ver documento da Unesco] (...)
O fundamento jurídico extraído da causa ilícita e imoral que põe em causa a validade dos contratos encontra-se em numerosas legislações nacionais civis e comerciais. Este fundamento remete-nos directamente para uma questão que diz respeito à doutrina da dívida odiosa: quem se beneficia com os empréstimos? No caso dos acordos estabelecidos com a Grécia, a Irlanda e Portugal, são claramente os bancos privados europeus (…) que tiram proveito dos empréstimos, ao passo que são responsáveis pela crise da dívida. (...)
(…) podemos (…) invocar o enriquecimento ilícito (um princípio geral do direito internacional segundo o artigo 38.° dos estatutos do Tribunal Internacional) (…)
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