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De Babilónia aos conquistadores das Américas: a tradição de anulação das dívidas privadas ilegítimas

CADTM, 06/03/2024

As dívidas privadas ao longo dos tempos

O credor exige que o devedor dê em garantia os bens que possui. Se o pagador falhar o reembolso, o credor toma posse do bem que foi dado em penhor

Há 5000 anos que as dívidas privadas desempenham um papel central nas relações sociais. A luta entre ricos e pobres, entre exploradores e explorado/as, tomou bastas vezes a forma de conflito entre credores e devedores. Com regularidade notável, as insurreições populares começaram muitas vezes da mesma maneira: com a destruição ritual de documentos relativos à dívida (tábuas, papiros, pergaminhos, livros de contas, registos de impostos, etc.). Estes acontecimentos são descritos nomeadamente por David Graeber no seu livro Dívida: os Primeiros 5000 Anos*, mas não é o único a fazê-lo.

Os efeitos da pandemia de covid-19 e as respostas impostas pelos governos aumentaram consideravelmente as dívidas das classes populares, nomeadamente no sector mais oprimido, o dos pobres. Antes disso, a crise internacional precedente, que começou em 2007, já tinha posto a nu o comportamento fraudulento dos bancos, designadamente em matéria de empréstimos imobiliários em diversas partes do mundo, em especial no Norte. Na sequência dos despejos massivos que tiveram lugar nos EUA, em Espanha e noutros países, cada vez mais pessoas puseram em causa as dívidas, mesmo em países onde a obrigação de reembolsar uma dívida era incontestável. Dos quatro cantos da Terra surgiram movimentos sociais que punham em causa o pagamento de dívidas privadas ilegítimas, quer se tratasse de dívidas hipotecárias ou estudantis, quer fossem reclamadas por grandes bancos ou por agências de microcrédito que concedem empréstimos com condições abusivas.

A seguir expomos, em traços largos, algumas das etapas históricas do «sistema da dívida privada» no Próximo Oriente, na Europa e nos quatro cantos do mundo conquistado pelos europeus. Seria preciso acrescentar o que se passou na Ásia, em África e nas Américas pré-coloniais, mas o quadro aqui esboçado é por si só já é bastante eloquente.

Hamurabi, rei da Babilónia, e as anulações da dívida2

O Código de Hamurabi encontra-se no Museu do Louvre, em Paris. De facto, o termo «código» não é apropriado, pois o que Hamurabi nos legou foi um conjunto de regras e de julgamentos respeitantes às relações entre os poderes públicos e os cidadãos. O reinado de Hamurabi, «rei» da Babilónia (situada no actual Iraque), teve início em 1792 a. C. e durou 42 anos. O que a maior parte dos manuais de História não revelam é que Hamurabi, tal como outros governantes das cidades-estado da Mesopotâmia, proclamou por diversas vezes a anulação geral das dívidas dos cidadãos aos poderes públicos, aos seus funcionários e dignitários. O chamado Código de Hamurabi foi provavelmente escrito em 1762 a. C. O seu epílogo proclamava que «o poderoso não pode oprimir o fraco, a justiça deve proteger a viúva e o órfão (…) a fim de prestar justiça aos oprimidos». Graças à decifração de numerosos documentos escritos em caracteres cuneiformes, os historiadore/as descobriram indícios incontestáveis de quatro anulações gerais da dívida durante o reinado de Hamurabi – em 1792, 1780, 1771 e 1762 a. C.

Na época de Hamurabi, rei da Babilónia, o poder instituído anulava periodicamente as dívidas privadas e restaurava os direitos dos camponeses

Na época de Hamurabi, a vida social, económica e política era organizada em torno do templo e do palácio. Estas duas instituições, muito imbricadas, constituíam o aparelho de estado, o equivalente aos actuais poderes públicos; aí trabalhavam numerosos artesãos e operários, além dos escribas. Todos eram abrigados e alimentados pelo templo e pelo palácio; recebiam rações alimentares que lhes garantiam duas refeições por dia. Os trabalhadore/as e dignitários do palácio eram alimentados graças à actividade de camponeses a quem os poderes públicos forneciam (alugavam) terras, instrumentos de trabalho, animais de tiro, gado, água para irrigação. As famílias lavradoras produziam, entre outros produtos, cevada (o cereal de base), azeite, frutos e legumes. Após as colheitas, as famílias camponesas deviam entregar uma parte ao estado, para pagarem o aluguer. Em caso de más colheitas, acumulavam dívidas. Além de trabalharem nas terras do templo ou do palácio, as famílias camponesas eram proprietárias das suas terras, das suas habitações, do seu gado e dos instrumentos de trabalho. Outra fonte das dívidas das famílias camponesas eram os empréstimos concedidos a título privado por altos funcionários e dignitários, a fim de enriquecerem e de se apropriarem dos bens das famílias camponesas, em caso de não reembolso das dívidas.

As anulações das dívidas davam lugar a grandes festividades, durante as quais eram destruídas as tábuas de argila onde estavam inscritas as dívidas

Quando as colheitas eram fracas, as famílias camponesas viam-se impossibilitadas de reembolsarem as dívidas contraídas em relação ao Estado (imposto em espécie não pagos) ou em relação aos altos funcionários e dignitários do regime, acabando por serem desapossados das suas terras e escravizados. Os membros da sua família eram igualmente reduzidos à escravidão por dívida. A fim de dar resposta ao descontentamento popular, o poder instituído anulava periodicamente as dívidas privadas3 e restaurava os direitos dos camponeses. As anulações eram celebradas com grandes festividades, durante as quais eram destruídas as tábuas de argila onde as dívidas4 estavam inscritas.

As anulações gerais da dívida estendem-se ao longo de 1000 anos na Mesopotâmia, entre 2400 e 1400 antes de Cristo

As proclamações de anulação geral das dívidas não se restringem ao reinado de Hamurabi; começaram antes dele e prolongaram-se depois5. Temos provas das anulações de dívida que remontam a 2400 a. C., ou seja seis séculos antes do reinado de Hamurabi, na cidade de Lagash (Sumer); as mais recentes datam de 1400 a. C., em Nuzi. Ao todo, os historiadore/as identificaram com exactidão cerca de 30 anulações gerais da dívida na Mesopotâmia entre 2400 e 1400 a. C. Concordamos com Michael Hudson6 quando ele afirma que as anulações gerais da dívida constituíam uma das principais características das sociedades da Idade do Bronze na Mesopotâmia. Aliás, encontramos nas diversas línguas mesopotâmicas expressões que designam essas anulações que rasuram as contas e põem os contadores a zero: amargi em Lagash (Sumer), nig-sisa em Ur, andurarum em Ashur, misharum em Babilónia, shudutu em Nuzi.

Com o último governante da dinastia Hamurabi em 1646 a. C., a anulação geral das dívidas é muito detalhada

Estas proclamações de anulação da dívida davam azo a grandes festividades, geralmente durante a festa anual da primavera. Durante a dinastia da família de Hamurabi instaurou-se a tradição de destruir as estelas onde estavam inscritas as dívidas. De facto, os poderes públicos mantinham uma contabilidade rigorosa, escrita em tábuas que eram conservadas no templo. Hamurabi morreu em 1749 a. C., após 42 anos de reinado. O seu sucessor, Samsuiluna, anula todas as dívidas devidas ao Estado e decreta a destruição de todas as tábuas das dívidas, salvo as que diziam respeito a dívidas comerciais.

Quando Ammisaduqa, último governante da dinastia Hamurabi, subiu ao trono em 1646 a. C., a anulação geral das dívidas que ele proclama é muito detalhada. Tratava-se manifestamente de evitar que certos credores tirassem partido de certas falhas. O decreto de anulação precisa que os credores oficiais e os colectores de taxas que tinham expulsado famílias camponesas tinham de indemnizá-las e restituir os seus bens, sob pena de serem executados. Se um credor tivesse açambarcado um bem exercendo pressão, tinha de restituir ou reembolsar por inteiro, se não queria sofrer a pena de morte.

Depois de 1400 a. C., não se encontrou nenhum acto de anulação de dívida. As desigualdades aumentaram e desenvolveram-se. As terras foram açambarcadas por grandes proprietários privados e a escravatura por dívida enraizou-se

No seguimento deste decreto, foram criadas comissões para rever todos os contratos imobiliários e eliminar os que estivessem sob a alçada da proclamação de anulação da dívida e restauraão da situação anterior, o statu quo ante. A aplicação deste decreto foi facilitada pelo facto de em geral os camponese/as espoliados pelos credores continuarem a trabalhar nas suas terras, embora estas tivessem passado para a posse do credor. Logo, ao anular os contratos e ao obrigar os credores a indemnizar as vítimas, os poderes públicos restauravam os direitos dos camponese/as. A situação degradou-se um pouco mais de dois séculos depois.

Sem querer embelezar a organização das sociedades de há 3000 a 4000 anos, é preciso sublinhar que os governantes procuravam manter a coesão social, evitando a formação de grandes propriedades privadas, aplicando medidas para que as famílias camponesas mantivessem o acesso directo à terra, limitando o crescimento das desigualdades, cuidando a manutenção e desenvolvimento dos sistemas de irrigação. Michael Hudson sublinha por outro lado que a decisão de declarar guerra pertencia à assembleia geral de cidadãos e que o «rei» não podia tomar sozinho essa decisão.

Parece que, na cosmovisão dos Mesopotâmios da Idade do Bronze, a criação original não tinha sido feita por um deus. O governo, confrontado com o caos, reorganizou o mundo para restabelecer a ordem normal e a justiça.

A partir de 1400 a. C., não se encontrou mais nenhum acto de anulação da dívida. As desigualdades aumentaram e desenvolveram-se. As terras foram açambarcadas por grandes proprietários privados, a escravatura por dívida enraizou-se. Grande parte da opulação emigrou para noroeste, em direcção a Canaã, com incursões pelo Egipto (das quais se queixaram os faraós).

No decurso dos séculos seguintes, considerados pelos historiadore/as da Mesopotâmia como tempos obscuros (Dark Ages) – por causa da redução de registos escritos –, temos contudo provas de lutas sociais violentas entre credores e devedores.

Egipto: a pedra de Roseta confirma a tradição das anulações da dívida

A pedra de Roseta, que foi subtraída por membros do exército napoleónico em 1799, durante a campanha do Egipto, foi decifrada em 1822 por Jean-François Champollion. Encontra-se actualmente no British Museum, em Londres. O trabalho de tradução foi facilitado pelo facto de a estela apresentar o mesmo texto em três línguas: egípcio antigo, egípcio popular e grego do tempo de Alexandre, o Grande.

O conteúdo da pedra de Roseta confirma a tradição de anulação das dívidas, instaurada pelos faraós no Egipto

O conteúdo da pedra de Roseta confirma a tradição de anulação das dívidas, que foi instaurada pelos faraós do Egipto a partir do século VIII antes de Cristo, ou seja, antes da conquista por Alexandre, o Grande, no século IV a. C. Aí podemos ler que o faraó Ptolemeu V, em 196 a. C., anulou as dívidas devidas ao trono pelo povo egípcio e não só.

Embora a sociedade egípcia do tempo dos faraós fosse muito diferente da sociedade mesopotâmica da Idade do Bronze, também aí encontramos indícios evidentes de uma tradição de proclamação de amnistia que precede as anulações gerais da dívida. Ramsés IV (1153-1146 a. C.) proclamou que quem tinha fugido podia regressar ao país. Quem estava na prisão foi libertado. O seu pai Ramsés III (1184-1153 a. C.) fez o mesmo. Note-se que no segundo milénio parece não haver pena de pprisão por dívida no Egipto. Os escrevos eram prisioneiros de guerra. As proclamações de Ramsés III e IV diziam respeito aos impostos devidos ao faraó, à libertação dos prisioneiros políticos, à possibilidade de regresso das pessoas condenadas ao exílio.

Só a partir do século VIII a. C. Encontramos no Egipto proclamações de anulação de dívidas e de libertação de pessoas escravizadas por não pagamento de dívidas. É o caso do reinado do faraó Bakenranef (717-711 a. C., cujo nome foi helenizado para Bocchoris).

Uma das motivações fundamentais para as anulações da dívida era que o faraó queria dispor de um campesinato capaz de produzir alimentos suficientes para as campanhas militares. Por essas duas razões, era preciso evitar que os camponese/as fossem expulsos das suas terras pela mão dos credores.

Assim que as classes políticas privilegiadas conseguem impor os seus interesses, as anulações desaparecem, mas a tradição da anulação permaneceu inscrita nos textos fundadores do judaísmo e do cristianismo

Em outra zona da região verificamos que os imperadores assírios do primeiro milénio antes de Cristo também adoptaram a tradição da anulação das dívidas. O mesmo acontecia em Jerusalém, no século V a. C. Assim fez Neemias em 432 a. C., certamente influenciado pela antiga tradição mesopotâmica, ao proclamar a anulação das dívidas dos judeus endividados aos seus compatriotas ricos. Por essa época foi concluída a redacção da Tora7. A tradição das anulações gerais da dívida faz parte da religião judaica e dos primeiros textos do cristianismo via Deuterónimo, que proclama a obrigação de anular as dívidas a cada sete anos, e Levítico, que a exige a cada jubileu, ou seja, de 50 em 50 anos8.

Durante séculos, muitos comentadores dos textos antigos, a começar pelas autoridades religiosas que se colocam do lado das classes dominantes, afirmaram que estas prescrições tinham apenas um valor moral ou constituíam votos pios. Ora as investigações históricas dos dois últimos séculos demonstram que essas prescrições correspondem a práticas confirmadas.

No «Pai Nosso», a mais comum das orações a Jesus, o texto original diz «Senhor, anulai as nossas dívidas, assim como nós anulamos as dívidas de quem nos deve»

Quando as classes privilegiadas conseguiram impor definitivamente os seus interesses, as anulações deixaram de ter lugar, mas a tradição da anulação permaneceu inscrita nos textos fundadores do judaísmo e do cristianismo. As lutas pela anulação das dívidas privadas marcaram a história do Próximo Oriente e do Mediterrâneo até meados do primeiro milénio da era cristã.

No «Pai Nosso», a oração a Jesus mais comum, em vez do actual «perdoai-nos as nossas ofensas [pecados] assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido», o texto grego original de Mateus (6, versículo 12) diz: «Senhor, anulai as nossas dívidas, assim como nós anulamos as dívidas de quem nos deve». De resto, em alemão e em holandês a palavra «Schuld» exprime indiferentemente o pecado e a dívida. Aleluia, esse termo que é sinal de alegria e é utilizado nas religiões judaica e cristã, provém da língua falada em Babilónia no segundo milénio antes de Cristo e significava a libertação dos escravos por dívida9.

Aleluia, esse termo que exprime alegria e é utilizado nas religiões judaica e cristã, provém da língua falada em Babilónia no segundo milénio antes de Cristo e significava a libertação dos escravos por dívida

Grécia. Na grécia, a partir do século VI antes da era cristã, assistiu-se a grandes lutas contra a escravatura por dívida e pela anulação das dívidas privadas do povo. Aristóteles escreveu em A Constituição de Atenas: «Os homens pobres, com a sua mulher e filhos, tornaram-se escravos dos ricos». Desenvolveram-se lutas sociais e políticas que acabaram por levar a disposições legais que proibiam a escravatura por dívida; assim aconteceu nomeadamente com as reformas de Sólon, em Atenas. Em Mégara, cidade próxima de Atenas, uma facção radical que conseguiu aceder ao poder proibiu os empréstimos com juros, e fê-lo com efeitos retroactivos, obrigando os credores a restituir os juros já recebidos10.

Ao mesmo tempo, as cidades gregas lançaram-se numa política expansionista e fundaram colónias, da Crimeia a Marselha, nomeadamente com os filhos dos pobres endividados. A escravatura desenvolveu-se então de maneira mais intensa, brutal e opressiva do que nas sociedades do Crescente Fértil que precederam.

As lutas pela anulação das dívidas privadas marcaram a história do Próximo Oriente e do Mediterrâneo até meados do primeiro século da era cristã

Roma. Muitas lutas políticas e sociais violentas foram provocadas por crises da dívida privada. Segundo a lei romana primitiva, o credor podia executar os devedores insolventes. O final do século IV a. C. foi marcado por uma forte reacção social contra o endividamento. Embora a escravização em resultado das dívidas tenha sido abolida para os cidadãos romanos, a abolição do empréstimo com juros não teve muito tempo de aplicação. Sucederam-se fortes crises de endividamento privado nos séculos seguintes, tanto na península Itálica como no resto do Império Romano. O historiador Tácito escreveu a propósito de uma crise de endividamento que ocorreu em 33 depois de Cristo, durante o reinado de Tibério: «O empréstimo a juros era um mal inveterado dentro da cidade de Roma, e causa frequente de sedições e discórdia; por isso foi restringido, mesmo nos tempos antigos...»1.

Idade Média. No início da época feudal, grande parte dos produtores livres foi sujeita à servidão, pois as famílias camponesas carregadas de dívidas viam-se incapacitadas para as reembolsar. Assim sucedeu nomeadamente durante o reinado de Carlos Magno, em finais do século VII, e no início do século IX2.

As religiões judaica, muçulmana e cristã no que respeita a empréstimos a juros

Desde a sua origem que a religião muçulmana proíbe o empréstimo a juros. O judaísmo proíbe-o no seio da comunidade judaica, mas a partir do primeiro século da era cristã3, por pressão dos ricos, corrigiu essa posição e passou a autorizá-lo. A religião cristã proibiu-o até ao século XV, mas depois as autoridades protestantes e católicas acabaram por permiti-lo.

Na Europa, a problemática das dívidas privadas é retomada de forma exacerbada no final da Idade Média

Em 1355, os habitantes de Siena, revoltados, incendiaram a sala do Palazzo Municipale onde eram guardados os livros de contabilidade. O objectivo era apagar todos os vestígios das dívidas que lhes tinham sido reclamadas e que, a seu ver, eram odiosas

A problemática das dívidas privadas é retomada de forma exacerbada a partir dos séculos XIII e XIV com a monetarização das relações. De facto, as corveias e os impostos pagos em espécie foram progressivamente substituídos por quantias em dinheiro. Consequentemente, os camponeses, os artesãos, etc., tiveram de se endividar para pagarem os impostos. Não conseguindo reembolsar, cada vez mais camponeses, artistas ou operários tornaram-se vítimas dos confiscos, foram espoliados ou encarcerados e frequentemente mutilados4.

Em 1339, em Siena (Itália), o governo local da cidade anuncia ao conselho que é preciso abolir a prisão por dívidas, caso contrário haveria que meter na prisão quase todos os habitantes, tal era o seu nível de endividamento. Dezasseis anos mais tarde, em 1355, a população revoltada de Siena pega fogo à sala do palácio municipal onde estavam guardados os livros de contas. Tratava-se de fazer desaparecer todos os vestígios de dívidas que, aos olhos da população, eram odiosas5.

Outro sinal da importância da rejeição da exploração pela dívida, no final do século XIV, quando as classes trabalhadoras tomaram momentaneamente o poder em Florença – conduzidos pelos Ciompi, os/as operários à jorna da indústria têxtil –, vemos entre as suas reivindicações: suprimir a amputação de uma mão em caso de não pagamento das dívidas e declarar uma moratória para as dívidas não pagas6; exigiam ainda um lugar na governação e que os ricos pagassem mais impostos. Acontecimentos semelhantes ocorreram pela mesma época na Flandres, Valónia, França, Inglaterra, etc.

A rejeição das dívidas no âmago das insurreições massivas das famílias camponesas do mundo germânico nos séculos XV e XVI

De 1470 a 1525, múltiplos levantamentos camponeses, da Alsácia à Áustria, passando pela maioria das regiões da Alemanha, Boémia, Eslovénia, Hungria e Croácia, estão ligados em grande parte à rejeição das dívidas imputadas às famílias camponesas e citadinas das classes dominadas. Centenas de famílias camponesas pegaram em armas, destruíram centenas de castelos, dezenas de mosteiros e conventos. A repressão fez mais de 100.000 mortos entre os/as camponeses7. Numa dessas rebeliões, em 1493, os/as camponeses sublevados exigiam, entre outras coisas, a adopção de um ano de jubileu, de modo que periodicamente todas as dívidas fossem anuladas8. Thomas Münzer, um dos líderes dos levantamentos camponeses, decapitado em 1525 quando tinha 25 anos, apelava à aplicação integral dos Evangelhos, nomeadamente no que dizia respeito à anulação das dívidas. Opunha-se a Martinho Lutero, que, depois de ter começado por denunciar em 1519-1520 a usura e a venda de indulgências pela Igreja Católica, acabou por defender a partir de 1524 os empréstimos a juros e a exigir que os/as camponeses e todos os/as devedores reembolsassem as suas dívidas. Lutero defendia, em oposição aos levantamentos camponeses, «um governo temporal severo e duro que obrigue os ímpios (…) a devolverem o que pediram emprestado … Ninguém deve imaginar que o mundo possa ser governado sem derramamento de sangue; a espada temporal só pode ser vermelha e sangrenta, porque o mundo quer e deve ser mau; e a espada é a vara de Deus e a sua vingança contra o mundo»9. No conflito que opunha os/as camponeses e outras camadas do povo (nomeadamente a plebe urbana, assim como os sectores mais empobrecidos, vagabundos, mendigos, etc.) às classes dominantes locais, Lutero escolheu um lado e proclamou que as leis do Antigo Testamento (como o ano jubilar) já não eram aplicáveis. Segundo Lutero, o Evangelho apenas descreve o comportamento ideal; na vida real, dizia ele, as dívidas deveriam ser sempre reembolsadas.

«Empresto-lhe o dinheiro e ele paga os juros pontualmente durante um ano ou dois; depois vem uma má colheita e ele fica com os pagamentos em atraso. Confisco-lhe a terra, despejo-o e o seu campo e o seu prado são meus. E faço isto não só com os camponeses, mas também com os artesãos»

Num texto anónimo que circulou na Alemanha a partir de 1521 encontramos este diálogo entre um camponês e um nobre que descreve bem a utilização do endividamento para desapossar o/a trabalhador dos seus utensílios ou da sua terra:

Camponês: O que me traz aqui? Bem, eu gostaria de saber como é que passais vosso tempo.
Nobre: Como é que hei-de passar o meu tempo? Estou aqui sentado a contar o meu dinheiro, pois não vês?
Camponês: Dizei-me, senhor, quem vos deu todo esse dinheiro que passais o tempo a contar?
Nobre: Queres saber quem me deu este dinheiro? Eu digo-te. Um camponês vem bater-me à porta e pede-me que lhe empreste 10 ou 20 guldens. Pergunto-lhe se tem um bom terreno. Ele diz: «Sim, senhor, tenho um bom prado e um excelente campo, que juntos valem cem guldens». Respondo-lhe: «Perfeito! Penhora o teu prado e o teu campo e, se te comprometeres a pagar um gulden por ano de juros, podes obter o teu empréstimo de 20 guldens». Feliz com esta boa notícia, o agricultor responde: «Dou-te a minha palavra de boa vontade». «Mas devo avisar-te», acrescento, «que, se não honrares o pagamento a tempo, tomarei posse das tuas terras e torná-las-ei minha propriedade». E isso não preocupa o agricultor, que me promete o seu pasto e o seu campo. Eu empresto-lhe o dinheiro e ele paga os juros pontualmente durante um ano ou dois; depois vem uma má colheita e ele fica logo com os pagamentos em atraso. Confisco-lhe a terra, despejo-o e o seu campo e o seu prado são meus. E faço-o não só com os camponeses mas também com os artesãos.10

Eis aqui, resumido em palavras simples, o processo de expropriação ao qual tentaram opor-se os/as camponeses e artesãos da Alemanha e de outras partes.

A conquista das Américas e a imposição da servidão por dívida

Como comenta David Graeber, os conquistadores, entre os quais Hernán Cortés, tinham-se endividado até ao pescoço para financiar as suas operações … De modo que exploraram e espoliaram com grande brutalidade as populações conquistadas, a fim de reembolsarem as suas dívidas11. Na conquista das Américas, a imposição da dominação europeia foi a par com a servidão por dívida das populações nativas12. A forma utilizada: a peonaje. O dicionário Littré definia no século XIX a péonage da seguinte maneira: «Assim se designa, no México, uma espécie de escravatura imposta aos indígenas, e que resulta do que os proprietários conseguem reter e os obrigar a trabalhar gratuitamente para saldar dívidas que esses trabalhadores contraíram junto dos proprietários». A peonaje é o sistema pelo qual os peões são atrelados à propriedade fundiária por diversos meios, entre eles a dívida hereditária. A peonaje apenas viria a ser abolida no México na década de 1910, durante a recolução.


Notas
* David Graeber, Dívida: os Primeiros 5000 Anos, ed. Bertrand, Portugal; ed. Três Estrelas, Brasil. [N. do T.]
2 Uma grande parte do texto que se segue foi extraído de Éric Toussaint, «A Longa Tradição de Anulação de Dívidas na Mesopotâmia e no Egipto entre o 3º e o 1º Milénios a. C.», https://www.cadtm.org/A-longa-tradicao-de-anulacao-de.
3 Nessa época, o Estado não se endividava. O mesmo sucedia no Egipto antigo, na Grécia e em Roma antigos, salvo em casos excepcionais em Roma. Na Europa, os estados só começaram a contrair empréstimos a partir dos séculos XIII-XIV. A partir daí, nunca mais pararam.
4 As dívidas entre comerciantes não faziam parte destas anulações.
5 Michael Hudson, «The Lost Tradition of Biblical Debt Cancellations», 1993, 87 págs.; «The Archaeology of Money», 2004. Ver também: David Graeber, Dívida: os Primeiros 5000 Anos, ed. Bertrand, Portugal; ed. Três Estrelas, Brasil.
6 Este artigo baseia-se essencialmente na síntese histórica apresentada por Michael Hudson, doutorado em Economia, em diversos artigos e outras obras: «The Lost Tradition of Biblical Debt Cancellations», 1993, 87 págs.; «The Archaeolgy of Money», 2004. Michael Hudson faz parte de uma equipa científica pluridisciplinar (ISCANEE, International Scholars’ Conference on Ancient Near Earstern Economies) que integra filólogos, arqueólogos, historiadores, economistas que estudam sociedades e economias antigas do Próximo Oriente. Os seus trabalhos são publicados pela Universidade de Harvard. Michael Hudson inscreve o seu trabalho no prolongamento das investigações de Karl Polanyi; além disso, publica análises sobre a crise contemporânea. Ver nomeadamente «The Road to Debt Deflation, Debt Peonage, and Neoliberalism», fevereiro/2012, 30 p. Entre as obras de outros autores que, desde a crise económica e financeira iniciada em 2007-2008, escreveram sobre a longa tradição de anulação da dívida, convém reler: David Graeber, Dívida: os Primeiros 5000 Anos, ed. Bertrand, Portugal; ed. Três Estrelas, Brasil.
7 A Tora (lei religiosa judia) é uma compilação dos textos que formam os cinco primeiros livros da Bíblia: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuterónimo. Não foram redigidos pela ordem que os conhecemos actualmente.
8 Ver Isabelle Ponet, «Os perdões de dívida no país de Canaã no primeiro milénio antes da nossa era». No Levítico encontramos não só a exigência de anulação das dívidas, mas também a libertação dos escravos por dívidas e de toda a sua família, e a devolução das suas terras e da sua casa. Mas atenção, isto apenas é válido para a população de Israel, não para os outros povos da região.
9 Michael Hudson, The Lost Tradition of Biblical Debt Cancellations, p. 27.
10 Ver David Graeber, op.cit.
11 Ver David Graeber, p. 385 e seguintes da edição francesa.
12 O papa Nicolau V tinha autorizado em janeiro de 1455 a servidão perpétua das populações consideradas como inimigas de Cristo. Isso justificava, entre outras coisas, a escravização dos/as Africanos nessa época (nomeadamente nas plantações criadas pelos Portugueses na Madeira) e mais tarde permitiu que os conquistadores europeus fizessem o mesmo no Novo Mundo. Eis um extracto da bula Romanus Pontifex: «Nós, considerando a deliberação necessária para cada um destes assuntos indicados, e considerando que anteriormente, ao dito Rei Afonso de Portugal foi concedido por outras cartas, entre outras coisas, o poder pleno e absoluto em relação a quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, onde quer que se encontrem, e dos reinos, ducados, principados, senhorios, possessões, bens móveis e imóveis de que sejam proprietários, para os invadir, conquistar, combater, derrotar e subjugar; e reduzir à servidão perpétua os membros das suas famílias, apoderar-se em proveito próprio e dos seus sucessores, apropriar-se e utilizar, para seu uso próprio e dos seus sucessores, dos seus reinos, ducados, condados, principados, senhorios, possessões e outros bens que lhes pertençam (...)» (sublinhado nosso).
 

Fontes e referências

Original: «De Babylone aux conquistadors en passant par le monde antique : les dettes».
Tradução de Rui Viana Pereira e Maria da Liberdade.

Michael Hudson,
«The Lost Tradition of Biblical Debt Cancellations», 1993;
«The Archaeology of Money», 2004;
«The Road to Debt Deflation, Debt Peonage, and Neoliberalism», fevereiro/2012.

David Graeber, Dívida: os Primeiros 5000 Anos, ed. Bertrand.

 
 

Índice deste caderno

Anulações da dívida privada ao longo de 5000 anos
temas: anulação da dívida

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