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O Banif e o poço sem fundo dos dinheiros públicos

Rui Viana Pereira, 09/01/2016

Em 2013 o Banif era o 8.º banco português. Sofria debilidades resultantes do seu envolvimento com pequenas e médias empresas de construção e em negócios obscuros na Madeira e em diversas partes do mundo. Face às imparidades1 que tinha em carteira e à mudança das regras bancárias2, teve de ser recapitalizado. É aí que o Estado entra com 1,1 mil milhões de euros3 em meados de 20134. O plano de resgate do banco previa também um reforço de capital privado no valor de 150 milhões, para reembolsar o Estado, e 300 milhões de capital privado para operações financeiras «estratégicas». Depois de pagar as CoCos, o Banif ficaria teoricamente com mais 1400 milhões de euros de capital.

No final de 2014 o Banif já tinha devolvido ao Estado 275 milhões de capital contingente (CoCos) e devia pagar mais 125 milhões de euros até final de Dezembro. Este reembolso nunca foi efectuado. Por conseguinte, no início de 2015 as autoridades reguladoras nacionais e internacionais, o Banco de Portugal e o Governo deveriam ter actuado energicamente, impedindo que a situação do banco se deteriorasse e o Estado ficasse salvaguardado como credor, mas nada aconteceu – o Governo deixou correr até às eleições e a bomba veio rebentar nas mãos do novo governo do PS.

Segundo vários analistas e pelo menos um dos ex-gestores, as contas do Banif estavam em dezembro-2015 «limpinhas e direitinhas», apesar do rombo causado em 2014 pelos negócios em parceria com o extinto BES5 – um rombo de valor aproximadamente igual à prestação que o Banif devia ter entregue ao Estado no final desse ano.

Diz-se por aí que a opção preferencial de António Costa, primeiro-ministro do actual Governo, teria sido a de integrar o Banif na Caixa Geral de Depósitos (CGD), um banco detido a 100% pelo Estado. Mas o facto é que em Dezembro de 2015 o Governo volta a resgatar o Banif, com a costumeira desculpa de que a UE não deixa proceder doutra forma, adoptando a seguinte solução de emergência:

  • o Estado desembolsa mais 2.225 milhões de euros em benefício do banco;

  • este montante vem somar-se aos anteriormente injectados pelo Estado e ainda não reembolsados (825 milhões de euros);

  • o banco é dividido em 3 partes: uma, com os «activos bons», é posta à venda; outra, com os «activos maus», fica a cargo do Estado; a terceira, «intermédia», fica com alguns activos teoricamente recuperáveis (fundos imobiliários6, etc.) que, tudo indica, servirão para tapar buracos criados no Fundo de Resolução bancária pela queda do BES.

Entretanto, uma cadeia de televisão privada portuguesa (a TVI), ligada a um grande grupo económico, anunciou o colapso e encerramento do Banif, atirando aos ouvidos do público um conjunto de informações donde resultou uma corrida aos depósitos que atingiu o belo montante de mil milhões de euros. Resultado: no dia seguinte as acções do banco valiam praticamente zero em Bolsa e o Santander pôde comprar o Banif pagando ao Estado 150 milhões. Estamos perante um caso evidente de corrupção ou jogo de influências – numa situação de manipulação de mercado como a referida, as autoridades reguladoras e o Governo deveriam ter suspendido o processo de venda e punido os manipuladores.

Como sempre acontece nestes casos, depois da «resolução» do banco, quando o problema parecia encerrado, começam a surgir problemas que estavam escondidos. Há duas semanas Nuno Teles, investigador da Universidade de Coimbra, fez as contas e estimou que o banco iria custar ao Estado 3600 milhões de euros, mas, ainda segundo o mesmo investigador, muito provavelmente este não será ainda o valor final.7 O investigador também refere que houve uma tentativa de integrar o Banif na CGD, mas Bruxelas não deixou. Esta frase, «Bruxelas não deixa», é um dos mantras mais repetidos diariamente em Portugal nos últimos anos – veio substituir a famosa máxima de Margaret Thatcher: «There Is No Alternative». É como se Bruxelas fosse o novo pseudónimo do Destino, ou o fado nacional.

Por outro lado, António Costa apresentou a solução adoptada pelo Governo como a única que garante os direitos dos trabalhadores do Banif; seria também, segundo o primeiro-ministro, a menos onerosa para o contribuinte. Ora o peso dos encargos assumidos pelo Estado para salvar os bancos é de tal forma brutal, que a discussão sobre soluções mais ou menos onerosas deixa de fazer sentido. Para se ter uma ideia do peso e da escala dos custos do Banif para o contribuinte, veja-se a seguinte tabela:

(em euros)
(valores do OE de 2015)

Custo

Custo em % das rubricas do OE

Custos estimados do Banif

3 600 000 000

 

Orçamento justiça

1 092 828 261

329%

Orçamento saúde

7 657 216 250

47%

Orçamento educação e ciência

6 852 650 986

53%

Orçamento solidariedade social

9 394 306 517

38%

Quanto à defesa dos direitos dos trabalhadores, estamos perante um sofisma: a «limpeza» de postos de trabalho do Banif, que tinha dezenas de balcões e milhares de trabalhadores espalhados pelo mundo, já foi feita entre 2012 e finais de 2015, com reduções de pessoal na ordem dos 50 %! 8

O que está em jogo no caso Banif

Este é mais um caso em que os contribuintes pagam para resolver as dificuldades em que os bancos privados se colocam por iniciativa própria. Mas o processo de venda do Banif, simples e descarado como é, expõe um outro aspecto menos debatido: a concentração financeira de capitais feita com a cumplicidade dos estados – neste caso, o banco beneficiado é o Santander, desesperadamente necessitado de ser recapitalizado.9 Estamos perante uma corrida à concentração financeira, com os bancos a acotovelarem-se uns aos outros e a tentarem sobreviver no futuro mercado bancário europeu unificado, que está prestes a chegar. Quem leva com as balas desta guerra é o contribuinte. Entretanto, nenhum dos problemas bancários e financeiros foi resolvido e, mais tarde ou mais cedo, os «grandes», depois de comerem «os pequenos», terão de ser novamente resgatados com dinheiros públicos, como se tem visto na generalidade dos casos europeus e americanos10.

A integração do Banif na CGD seria uma boa solução?

Várias pessoas e partidos advogaram a integração do Banif na CGD como solução ideal ou menos má. É muito duvidoso que essa fosse uma verdadeira solução, que servisse para resolver os problemas de fundo da banca e do Banif. Os defensores desta proposta esquecem sobretudo que um banco detido a 100% pelo Estado não deve ser confundido com um banco socializado – são duas coisas distintas.

Quer o Banif fosse integrado na CGD quer fosse integrado noutro banco qualquer, as suas imparidades e negócios ruinosos não desapareceriam por obra e graça do espírito santo. Atirar com tudo isto para dentro da CGD seria uma bela forma de estoirar de vez com o maior banco português, detido em 100% pelo Estado.

O que importa saber sobre a CGD

A Caixa Geral de Depósitos (CGD) opera hoje como banco de depósitos e como operador financeiro – um caso típico onde se concentra todo o tipo de operações bancárias, financeiras e especulativas, sem lei nem grei. Foi criada em 1876, antes da I República, por decreto régio, com o fim de recolher depósitos obrigatórios. Em 1929 o ditador Salazar intervém para transformar a CGD num banco de depósito e crédito. Os fundos de reforma dalgumas áreas profissionais passaram a ser depositados na CGD, o que permite compreender como pode o banco ter crescido tanto. Em 1969 Marcelo Caetano, sucessor de Salazar, altera radicalmente o estatuto da CGD, que passa a ser uma empresa; até então era um serviço público, sujeito às regras dos serviços públicos. Em 1992 o banco adquire o estatuto de sociedade financeira. A partir desse momento deixa de fazer sentido falar de serviço público ou do papel da CGD no investimento produtivo – é o efeito dos tristemente célebres 10 anos do Cavaquistão.

A única coisa que distingue a CGD dos restantes bancos durante algum tempo, após 1992, é o facto de ter atrás de si uma tradição de apoio à pequena poupança e às reformas. Era normal vermos diariamente pessoas idosas procurarem conselho aos balcões da CGD, sobre como guardar ou aplicar as suas pequenas poupanças. Quando a CGD se tornou um banco como todos os outros, os seus gestores induziram nos funcionários uma nova cultura baseada na competição interpares e na corrupção (prémios por enganar os clientes). Muitos dos trabalhadores e gerentes de balcão passaram então a explorar o capital de confiança que o banco tinha junto dos depositantes, levando-os a desviar as suas poupanças e parte do dinheiro da sua reforma para aplicações especulativas com resultados catastróficos. Por norma, o contrato dessas aplicações continha duas regras opostas: se a aplicação rendesse lucros, esses lucros seriam divididos entre o depositante e o banco; se houvesse prejuízos, este seriam descontados nas poupanças do utente.

Durante certa época, quem tinha conta na CGD e fazia vida nocturna sabia que todas as noites, à hora de abertura da Bolsa de Hong-Kong, o dinheiro desaparecia da conta (a caixa multibanco apresentava saldo zero), para reaparecer poucas horas mais tarde. Este e muitos outros procedimentos transformaram um banco que tinha fama de fornecer um serviço público amistoso num pirata especializado em assaltar viúvas reformadas.

Acenar com a ideia de que a CGD é um banco do Estado e que por isso tem belos olhos e melhores critérios, que apresenta uma bela silhueta de consciência e uma arca de responsabilidade ética face aos contribuintes é, pelo menos, intelectualmente desonesto. A CGD em nada se distingue dos demais bancos; é tão pirata e trafulha como os demais; oferece aos grandes clientes meios de fuga ao fisco e desvio de capitais para paraísos fiscais, como os demais; tendo todas as condições para ser um banco eticamente correcto e financeiramente sólido, já que passam por lá os salários e as contribuições de centenas de milhares de trabalhadores, envolveu-se de tal forma na trafulhice financeira, foi tão descaradamente utilizado para salvar negócios privados, que teve de beneficiar da maior fatia do fundo de 12 mil milhões de euros disponibilizados via empréstimos da Troika para recapitalização dos bancos.

A socialização dos bancos é a única solução aceitável

A única solução boa para o Banif seria a mesma recomendável no caso de todos os outros bancos – a aplicação de uma fiscalização eficaz; a separação rigorosa entre a parte comercial e a parte financeira; a aplicação de estatutos e regras diferentes a ambos os tipos de bancos; o castigo leonino de cada vez que o banco se envolvesse em lavagem de dinheiros, fuga ao fisco, fugas de capital para paraísos fiscais, dentro ou fora da Europa; e, em caso de bancarrota, a sua extinção pura e simples, com reversão dos activos recuperáveis para o Estado, e com cobertura de custos através do arresto e penhora de bens e património dos grandes depositantes, accionistas e gestores responsáveis; ou, se uma parte do banco ainda pudesse ser salva, a sua socialização – o que significa a sua gestão pelos interessados (trabalhadores, depositantes e credores) e não a sua entrega a um gestor obcecado por lucros e prémios que o elevem ao «ceo».

Quanto à CGD, em vez de servir para salvar os desaires e loucuras doutros fundos financeiros, imobiliários e de pensões, deveria ser socializada e expurgada dos seus departamentos de especulação financeira, posta ao serviço do crédito às famílias e ao investimento produtivo, reconvertida em fiel e amistoso resguardo gratuito dos salários e das poupanças dos trabalhadores. Com a mudança de estatuto da CGD, aliás, obter-se-ia um bónus: não mais Bruxelas teria bases para queixar-se de que a CGD faz concorrência desleal (amparada pelo Estado) à banca privada – às vezes o que a lógica parece incapaz de solucionar resolve-se numa penada com um pouco de imaginação, como diria Einstein.

[versão corrigida de alguns erros e imprecisões em 9/01/2015 e 24/12/2016]


Notas:

1 Imparidade, ao fim e ao cabo, significa prejuízos contabilísticos causados por especulação financeira ou contabilística. O conceito, inventado em 1998 pela International Accounting Standard n.º 36, estabelece que uma imparidade ocorre quando encontramos num balanço um valor de um activo superior ao seu valor real, isto é, ao valor que podemos recuperar. A introdução deste conceito corresponde a uma mudança muito radical dos métodos contabilísticos na época neoliberal: os critérios deixaram de ser objectivos e passaram a ser subjectivos (ver: Contabilidade Financeira, «Imparidade», 14-maio-2009).

2 A mudança em causa consistiu no aumento dos rácios de capital Tier 1 e 2. Este rácio tem a ver com a proporção entre o património líquido do banco e os seus investimentos de risco. Existe uma norma que impõe um rácio mínimo obrigatório, de forma que quando o banco aumenta os seus investimentos de risco, pode ter de recapitalizar-se (aumentar o capital líquido) para manter esse rácio. O risco é calculado caso a caso e tem a ver com expectativas futuras, de modo que mais uma vez encontramo-nos perante um problema de avaliações subjectivas que podem provocar imparidades.

3 Os 1100 milhões injectados pelo Estado, sacados do fundo de recapitalização dos bancos criado por acordo e empréstimo com a Troika, foram aplicados da seguinte forma: 700 milhões para subscrever acções a 0,01 euros cada unidade; o restante para comprar obrigações CoCos (capital contingente, ou seja, empréstimo que se transforma em acções se não for reembolsado).

4 À época, isto representava cerca de 11 vezes o valor do banco em Bolsa, segundo «Banif: Estado vai Controlar 99,2% II», in Viriato à Pedrada, 09-02-2013.

5 «Jorge Tomé assinalou que [bastava aumentar o capital em] 350 milhões de euros, montante que daria para pagar os 125 milhões de euros de títulos de dívida. “Era fácil”, argumentou, acrescentando que o preço de venda do Banif poderia chegar “aos 450 milhões euros”, um valor que não foi atingido também porque “houve aquele episódio da TVI”, que noticiou que estava a ser preparado o fecho do banco» – in Jornal de Negócios, entrevista a Jorge Tomé, por Nuno Carregueiro, 24-12-2015.

6 «Banif tem 1200 milhões em imóveis para vender e pagar ao Estado» – in Público, entrevista a Jorge Tomé, por Cristina Ferreira e Pedro Sousa Carvalho, 31-08-2013.

7 Entrevista a Nuno Teles, «Banif pode custar 3.600 milhões de euros ao Estado», in RTP, por Nuno Rodrigues, 22-12-2015.

8 Ver: «Banif Brasil incluiu uma redução do número de agências, de 19 para 2, e uma queda no número de colaboradores de 233 para 127», in Portugal Digital, por Jorge Horta, 14-11-2014; «BANIF abre um processo de despedimento de cerca de 300 trabalhadores e em simultâneo recorre a dinheiros públicos para se recapitalizar», Sindicato dos Trabalhadores da Actividade Financeira, julho-2012.

9 «The bank’s 7.5 billion-euro stock sale in January wasn’t enough […] JPMorgan Chase & Co. analysts led by Kian Abouhossein estimate the bank needs as much as 5.5 billion euros in new equity», in Bloomberg Business, por Macarena Munoz Montijano, 21-09-2015.

10 Veja-se o caso Dexia, com um total de 9 mil milhões de sucessivos resgates e 43,7 mil milhões de garantias depositadas pelo Estado belga, ou seja, 20% do orçamento de Estado belga! Ver: «Dexia: Merci pour la dette!», in CADTM, 20-05-2015.

 

Fontes e referências

Entrevistas a Jorge Tomé, ex-administrador do Banif:

Artigos gerais sobre o processo Banif:

Artigos sobre redução de pessoal:

Situação do Santander:

 
temas: sistema financeiro, banca

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